quarta-feira, 13 de março de 2013

João Gilberto só fez um disco fundamental


João Gilberto é o artista da música brasileira realmente relevante para o mundo. A música popular brasileira é bastante relevante no seu conjunto, mas nossos músicos, individualmente, não. Nenhum deles foi, como João Gilberto, um inventor de porte, daqueles que descobrem a lei da gravidade ou a contrariam.

João Gilberto é o nosso Charlie Parker, que aliás tinha o Dizzie Gillespie como "pensador" e protetor, assim como João Gilberto teve seu Tom Jobim. Jobim, óbvio, também foi relevante, pois compôs canções que tocavam quase tanto quanto as dos Beatles. Mas era "apenas" um grande compositor de música popular. Como músico, péssimo, só fazia shows porque não recebeu nem 10% dos direitos autorais a que teria direito. João Gilberto e Charlie Parker são de outra categoria, pois reinventaram tudo o que havia para reinventar -- e executavam.



O disco de que eu falo se chama "João Gilberto'. Foi gravado nos Estados Unidos e lançado no Brasil em 1973 (lá embaixo tem a lista das faixas). Tinha uma capa branca, com letras e foto em sépia e com o nome do disco em relevo na versão em vinil.

A arte de destruir a arte

Quando virou CD, parece que em 1988, mais uma lenda ligada ao João Gilberto surgiu: teriam perdido as matrizes da gravação do LP (com a mixagem conferida milimetricamente pelo autor) e fizeram de qualquer jeito. Não tenho ouvido milimétrico, mas sei que destruíram o final de uma das músicas, "Valsa (Como são lindos os Yoguis) (Bebel)". A música tem uma harmonia circular, meio infantil e hipnótica (talvez tenha sido composta para fazer a filha dormir), que só se resolve num último acorde simples mas completamente inesperado, pois parece que nunca chegaria mas finalmente vem. Na versão em CD, resolveram mudar o final da música e dar um "fade-out" (ir diminuindo o volume) e dane-se a resolução. O último acorde desapareceu, ficou apenas pra quem tem o vinil.

A lenda é que o artista processou a gravadora e parece que durante um tempo não era possível mais comprar o CD. Uma vez, nos anos 90, perguntei à assessora de imprensa da gravadora em questão sobre esse assunto; ela desconversou e nunca mais falou comigo... Parece que aí tem.

Não tenho mais o vinil e portanto não consigo comparar o resto dos erros em relação ao original; mas dizem que é um crime atrás do outro. O jeitinho brasileiro é de vomitar, não tem jeito.

O disco de 1973 tem apenas o João Gilberto na voz e violão, a Miúcha fazendo segunda voz em uma faixa (Izaura) e uma bateria completamente discreta de Sony Carr, provavelmente o único baterista americano da história que entendeu o samba e conseguiu suportar João Gilberto. Ouvi o disco umas 500 vezes nesses 40 anos. "Tirei' algumas das harmonias no violão, pra entender o que estava acontecendo. Em 1973 eu era músico e sabia fazer essas coisas.


[A partir de agora, todas as informações objetivas deste post vêm do que eu lembro ter lido em livros, especialmente "Balanço da Bossa", do Ruy Castro. As opiniões aí misturadas naturalmente ficam por minha conta.]

Como se livrar de arranjos cafonas

Digo que este é o único disco fundamental de João Gilberto pelo seguinte: antes de gravá-lo, ele era obrigado, no Brasil, a suportar arranjos horrendos e datados, orquestrinhas de todos os tipos, porque a indústria fonográfica brasileira da época tinha acordos com os músicos e arranjadores que consistiam em empurrá-los no máximo possível de gravações. Além disso, segundo li e sou capaz de comprovar ouvindo, os produtores davam um jeito de "limpar" as gravações, tirando ruídos, incluindo, no caso do João Gilberto, suas respirações e pequenos estalos de língua.

A gravação de "Chega de Saudade", considerada o marco inicial da bossa nova, é descrita por Ruy Castro de forma hilariante. Tom Jobim pra lá e pra cá, tentando fazer a orquestrinha se entender com o maluco, que sempre achava algo de errado, e finalmente explodindo com o cantor. Depois de horas de absoluto estresse no estúdio, com João Gilberto apontando o quadricentésimo problema e os músicos quase pedindo demissão, ele teria dito algo do tipo: "Calma, Tom, você é brasileiro, você é preguiçoso..."

Quando ele conseguiu gravar nos Estados Unidos, onde já era endeusado desde 1962, longe dos produtores analfabetos brasileiros, teve finalmente liberdade total.

O resultado é um disco único, fundamental. Uso a palavra fundamental com o seguinte sentido: aquilo que reúne e demonstra, de forma inequívoca e clara, os fundamentos de algo. Os fundamentos da música de João Gilberto são os seguintes:
1. Corrija os compositores das canções. Eles têm boas ideias, mas não entendem nada.
2. Não faça nada, absolutamente nada que não seja o necessário.

Para quem não entende nada de música, muito menos por que um cara tão chato fez tanto sucesso internacional, recomendo um experimento:
a) Tente cantar "Águas de Março" junto com a gravação da Elis Regina ou qualquer outra. Conseguirá facilmente.
b) Tente fazer o mesmo com a versão do João Gilberto dessa música nesse disco. Não conseguirá. Ele faz uma operação matemática tão complexa com a divisão da melodia (adiantando as frases, mas de um jeito que milimetricamente continua combinando com os acordes), que quase ninguém é capaz de acompanhar. O mais curioso é que, se tiver ouvidos leigos, você só repara que alguma coisa louca está acontecendo quando tenta cantar junto. Se apenas ouvir, parecerá normal. São mágicas desse tipo que fizeram de João Gilberto um artista completamente fora da curva.
Clique aí e tente cantar junto:



Tenho a impressão de que João Gilberto teria gravado esse disco em 1958, se pudesse. Penso que nesse disco ele fez o que sempre quis fazer, em harmonia, divisão e canto. Mais do que em "Chega de Saudade" e todos os outros discos juntos.

Em outras palavras: antes desse disco, João Gilberto era sufocado pelos arranjos cafonas, o que tornava impossível ouvir sua música.

Depois disso, não havia mais o que fazer; ele apenas se repetiu e se repete até hoje, tentando ganhar algum dinheiro para pagar os inúmeros processos. Não que se repita propriamente, pois ele jamais toca a mesma música duas vezes do mesmo jeito (quem jura conviver com ele diz que ele nunca faz isso nem sozinho, muito menos em discos ou shows). Aliás, pelo que se sabe da sua obscura biografia, ele está pouco se lixando se repete ou não, ou o que achamos disso. Só digo que nesse disco branco conhecemos por que o cara veio ao mundo. E isso não mudou nos discos e shows que vieram depois.

Portanto, é muito bom que ele tenha feito um disco fundamental, e melhor ainda que tenha feito só um. Os outros artistas da música brasileira não fizeram isso e dificilmente farão. Nem quando se juntam em bando: Tropicália, ouvido hoje, é apenas anedótico, mesmo com a ajuda de feras como Rogério Duprat. Veja que "fundamental" é diferente de "histórico". O disco branco de João Gilberto é completamente resistente ao tempo e ao espaço.

E olha que eu estou falando da segunda melhor música popular do mundo, que é a brasileira (a primeira é a norte-americana, é óbvio, mas pensando bem as duas são africanas). Imagine as pavorosas músicas populares francesas, italianas ou alemãs.

Mesmo o tango, argentino, é enauseantemente lacrimoso e arrogante. Se for pra ser corno, é muito melhor ser o corno do Lupicínio Rodrigues do que o do Gardel: pelo menos não vão dar risada de você. No dia em que os argentinos pararem de chamar os negros de macacos, terão finalmente uma música popular relevante e não apenas anedótica.


Obs 1:
As faixas são as seguintes:

"Águas de Março" (Tom Jobim) – 5:23
"Undiú" (João Gilberto) – 6:37
"Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso) – 4:43
"Avarandado" (Caetano Veloso) – 4:29
"Falsa Baiana" (Geraldo Pereira) – 3:45
"Eu Quero um Samba" (Janet de Almeida, Haroldo Barbosa) – 4:46
"Eu Vim da Bahia" (Gilberto Gil) – 5:52
"Valsa (Como são Lindos os Yóguis)" (João Gilberto) – 3:19
"É Preciso Perdoar" (Alcivando Luz, Carlos Coqueijo) – 5:08
"Izaura" (Roberto Roberti, Herivelto Martins) – 5:28

Obs 2:
Hoje, 10 de março de 2013, a Wikipédia brasileira, no verbete sobre este disco, tasca o seguinte: "João Gilberto, violinista brasileiro...". Ou seja, João Gilberto toca violino. O resto do verbete é mal traduzido do verbete da wikipedia americana. Traduz "guitar" por guitarra etc. Fala que o disco é "psicodélico". Adoro o projeto wikipédia, mas não consigo suportar o analfabetismo.


3 comentários:

Allan disse...

Olá, Beto. Texto muito bom, parabéns. Só precisa de uma correção, talvez: "Balanço da bossa" é um livro do poeta Augusto de Campos - o de Ruy Castro se chama "Chega de saudade".

Beto Melo disse...

Tem toda razão!!!!!

Unknown disse...

Apesar de raivoso, muito bom texto.
Gostoso de ler, nessa visão mais detalhada sobre esse disco e cantor.