quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Lugar de jornalista é no inferno





Como cantou Tati Quebra Barraco: calma, minha gente. Não estou querendo mandar os jornalistas para o inferno.
Afinal, por falta de talento suficiente pra qualquer coisa, também sou jornalista. Estou apenas dizendo em que lugar os jornalistas devem estar e por que são pagos para isso. Além disso, gostaria de demonstrar a hipocrisia dos leitores que reclamam que os jornais "só trazem notícia ruim".
Lugar de jornalista é no inferno pelos seguintes três motivos:

1. O céu não é notícia e não tem mulher bonita

Além de ser um lugar extremamente chato (aliás, por isso mesmo) no céu dos crentes monoteístas (99% dos brasileiros) não acontece nada. Como tudo é perfeito, não há motivo para nada acontecer. Só acontecem eventos em ambientes desequilibrados e imperfeitos, como na natureza terrena, na física e na ciência em geral. No céu, vigora a homeostase plena. A temperatura é o zero absoluto.
Por que um empreendimento de mídia chamado Diário do Céu seria um fracasso?
Imaginem a capa do Diário do Céu, edição 2.190.000 (esse é o número de dias desde que existe o céu; o céu tem 6 mil anos, como todos sabem):

Ministério dos Dinheiros anuncia que a inflação de janeiro foi zero; cotação do sestércio continua inalterada em relação ao dracma

Deus concorre com ele mesmo à presidência e conquista sua 547.500a reeleição com 100% dos votos; eleito anuncia que nada mudará em seu 547.500o mandato


No Brasil, 236 jovens morrem em Santa Maria mas as almas passam bem [censurado porque pode parecer aquela charge que horrorizou um monte de jornalistas]


No Oceano Índico, tsunami de Natal mata 230 mil pessoas mas as almas passam bem

Madre Teresa de Calcutá ganha concurso de Miss pela 15a vez; Zezé Macedo continua inconformada, mas resiliente


Templários têm novas provas contra Satanás; "O cara é do mal", afirmam


Imagens de Jesus naquele vídeo do Youtube onde ele faz trejeitos de gay são falsas, diz Santo Agostinho


Vamos combinar: alguém leria um jornal desses? Claro que não.
Em primeiro lugar, porque a capa do Diário do Céu é sempre a mesma. As páginas internas, também. Como nada acontece, os jornalistas do céu escrevem sempre as mesmas matérias, com os mesmos textos, títulos, fotos, ilustrações e design.
As almas dos jornalistas que vão para o Céu, tão logo chegam, são imediatamente contratadas, pois no céu não há desemprego. Como as desnotícias são sempre as mesmas, não há como cometer erros, razão pela qual no Diário do Céu não há aquelas costumeiras ondas de demissões um pouco antes de cada dissídio. Também não há processos contra jornais ou jornalistas, devido à absoluta e conhecida ausência de advogados no Paraíso.
Na verdade, as poucas almas dos jornalistas que vão para o céu já chegam desempregadas e assim permanecem para toda a eternidade. É que o Asilo dos Jornalistas Desempregados, no céu, se chama Diário do Céu. Jornalistas que vão para o céu são tão ingênuos que caem alegremente na pegadinha.
Quanto ao quesito "mulher bonita", há controvérsias. Angelina Jolie, cujo rosto e corpo foram obviamente esculpidos pessoalmente pelo Demo e que roubou o maridão da boa-moça Jennifer Aniston na caruda, danou a se meter em ONGs e adotar pobrezinhos. Pode ser que vá para o céu, mas o Coisa-ruim, cercado dos melhores advogados, vai reivindicar sua alma, alegando direito de imagem. O fato é que não há revistas no céu, razão por que jamais saberemos o que vai rolar.

2. Leitores só gostam de má notícia

É lugar-comum achar que os jornais só trazem más notícias porque os donos dos jornais e os jornalistas têm algum problema psicológico.
Donos de jornal gostam de vender jornal; se boas notícias vendessem jornal, ocultariam as más e só publicariam as boas. É tão óbvio que dá preguiça até de digitar.
Quem gosta de má notícia é o cidadão. O motivo é um só: comemorar que aquilo não aconteceu com ele. É o mesmo mecanismo que move as piadas: sempre alguém se dá mal na piada, e o sujeito que ri comemora -- através da risada -- o fato de não ser tão desgraçado quando o infeliz que se ferrou na piada.
Não existe piada do bem por essa simples razão: piadas do bem não têm graça.
Achar que o jornalista é uma espécie de corvo, ou abutre, é hipocrisia. Jornalista, no máximo, é o garçom da refeição dos verdadeiros abutres: os leitores. São os leitores que gostam de carniça, não os jornalistas. Nenhum jornal é imposto goela abaixo dos leitores. Jornais quase sempre são comprados, ou seja, alguém dá dinheiro e quer algo em troca. Mesmo os jornaletes gratuitos "cobram" do leitor o seu tempo, assim como os notíciários de TV, os programas de rádio e os portais de internet. Afinal, estou falando de jornalismo; o tal jornal de papel é só seu mais famoso e antigo símbolo.

3. O deus dos jornalistas é Mercúrio

O deus-símbolo do jornalismo, pelo menos aqui no Brasil, é Hermes, ou Mercúrio. Muita gente pensa que é porque ele era o mensageiro e tinha asinhas nas sandálias. Não é. É porque ele era o único deus do Olimpo a quem era facultado entrar no inferno (na verdade, no Mundo dos Mortos) e sair dele, trazendo notícias de lá para os vivos.
O inferno da mitologia grega era o reino de Hades, protegido, em sua entrada, pelo cão Cérbero, uma criatura assustadora, programada para deixar qualquer um entrar e ninguém sair. Ninguém, menos Hermes, que podia conduzir almas para lá e voltar alegremente com as notícias. Hermes tinha livre trânsito entre o inferno e os palácios, exatamente como os jornalistas de hoje.
Jornalistas são assim: se houve corte de custos no jornal e o repórter for azarado, de manhã estará no massacre do Carandiru, à tarde no lançamento de um carro de luxo e à noite cobrindo Santos X Corinthians.

Lugar de jornalista é onde as coisas acontecem, não onde não acontecem. "Acontecer", no vocabulário do leitor, é um evento extraordinariamente ruim, que merece ser evitado. Mesmo notícias do tipo "Acabou a Guerra" de 1945 só são boas porque o leitor comemora: não vou morrer como os outros 30 milhões de infelizes. Nunca houve uma manchete assim: "Não Começou a Guerra".
Isso inclui assessores de imprensa: quanto mais problemas as empresas tiverem com a mídia, tanto melhor, o que inclui problemas do tipo: "por que meu concorrente aparece mais do que eu?". Se não tiverem problemas, as agências de publicidade são suficientes.
O jornalista, quando pensa em seu emprego, torce secretamente, mas nunca publicamente, para que o pior aconteça. Publicamente, em alguns casos até para si mesmo, dirá que sua missão é a busca da "verdade", que representa o "quarto poder" etc etc.
Esses nunca se tornam editores, nem diretores de redação, muito menos donos de jornal.


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